tentativa de praticar a escrita a partir da criação de personagens antropomorfizados (ou não) que precisam encarar o tédio do dia-a-dia

19 de mar. de 2006

O pássaro amarelo

Era uma vez um passarinho amarelo. Ele vivia numa gaiola cheia de palha. Todo dia sua dona abria a gaiola para trocar a palha, e o pássaro ficava apenas observando, sem reagir. Um dia ele resolveu testar seus limites de liberdade. Assim que sua dona abrira a gaiola, o pássaro fugiu. Atônita, a menina ficou incapaz de reagir. Como a janela estivesse aberta, o passarinho pôde voar em direção à total liberdade. Dentro de poucos instantes já havia alcançado a rua, um lugar que jamais vira.

No começo, ficou meio zonzo com tantos barulhos, cheiros e fumaças. Mas em seguida acostumou-se a ver o mundo em escala de cinza. Estranhou por não encontrar palha sob seus pés (para quem vivera a vida toda diante de grandes e palha, era normal acreditar que o mundo todo fosse assim; do particular abstrai-se a regra geral). Mas em seguida habituou-se a ver o mundo com todas as suas cores. Não demorou para encontrar uma árvore, onde viviam centenas de passarinhos. Talvez por ser diferente, ou menorzinho, os demais passarinhos o puseram para correr. Ele não entendia. Achava que tudo fosse de todos – ignorava que houvesse a tal da propriedade privada.

Depois de perceber que nas árvores haviam passarinhos, ele continuou indo de árvore em árvore em busca de seus semelhantes. Entretanto, todo pássaro da cidade era igual ao cenário que o passarinho via: tudo ali era hostil e cinza.

Depois de muito voar, já meio arrependido de ter abandonado o aconchego de sua embora apertada mas aconchegante gaiola (ao menos seu cocho era reabastecido no mínimo duas vezes ao dia, com o melhor dos alpistes... o pássaro já estava voando há horas, e ainda não tinha encontrado nada que parecesse com comida; sua esperança era poder encontrar pássaros solidários que o mostrassem onde fosse possível consegui-la), o passarinho resolveu descansar no parapeito de uma janela. Primeiro, observou a rua ao seu redor. Carcaças gigantescas de metal zuniam em alta velocidade no asfalto sob seus pés. Monstros voadores retumbavam nos ares de tempos em tempos. Havia um barulho insistente de perfuração e aprofundamento. Era tudo tão confuso que o passarinho se sentia zonzo. Para desviar o olhar dessa atmosfera cinza e barulhenta, o passarinho olhou para o outro lado da janela. Dentro, avistou móveis imponentes, pessoas circulando, e, no canto da sala, uma gaiola pendia no ar. Nela, havia um passarinho esmirradinho, amarelo que nem ele. O pássaro cantava solitariamente, e ninguém prestava atenção aos seus lamentos: todos estavam ocupados demais com suas próprias vidas, em algum tipo de discussão, do outro lado da sala. Observando alguém igual a si, o passarinho do lado de fora percebeu o quanto sua vida era limitada por aquelas grades, o quanto era infeliz e o quanto vivia solitário. De repente, o mundo lá fora passou a ganhar uma espécie de colorido diferente. Já não era todo pateticamente cinza. Havia as árvores, que eram verdes. E as flores, que podiam ser amarelas, vermelhas, rosa, e de uma infinidade de outras cores. Os monstros de metal podiam ser também de várias cores. As habitações de concreto eram multicoloridas. Até que o mundo era bem bonito, sim. Se comparada com as limitações espaciais de uma gaiola, a cidade era o melhor dos mundos possíveis!

Uma euforia tomou conta do passarinho, mas em seguida esvaeceu-se: por mais lindo que fosse o universo, ele ainda não tinha descoberto uma maneira de alimentar-se. E a fome já começava a assolar seu reduzidíssimo estômago bipartido.

Tentou mais uma vez fazer contato com os passarinhos incolores da cidade. Mas em todas as copas de árvore em que metia o bico era sumariamente expulso por brados de reprovação por sua presença. Desolado, não viu outra saída senão procurar o caminho de volta para casa. Como não conhecia o exterior do apartamento que habitava, resolveu guiar-se pelo cheiro. Era hora do almoço. De Domingo. Provavelmente os pais de sua dona estariam fazendo o almoço a essa hora. E, como em todo Domingo, o prato seria abóbora com carne. O cheiro era forte. Característico Ele o conhecia bem. O pássaro calculava que não devia estar muito longe de casa, pois não havia voado tanto. Ele reuniu todas os seus esforços, possíveis e impossíveis, e acompanhou o odor que exalava de todas as janelas de todos os prédios e casas que havia por perto. Quando estava prestes a desistir e a se entregar, encontrou uma janela aberta lá no alto de um edifício. Subiu, e à medida que se aproximava, os soluços sufocados de uma garotinha tornavam-se mais nítidos. Ao atingir a janela, reconheceu sua pequena dona, sentada a um canto de seu quarto, chorando. Naquele momento, a possibilidade de liberdade já não fazia sentido para o pássaro. Ele se sentia satisfeito por ter voltado. Entrou pela janela, e bicou a menina carinhosamente em seu braço. E o sorriso que recebeu de volta foi o suficiente para ele nunca mais sequer pensar em liberdade.

Em seguida ela o colocou de volta à gaiola, abasteceu seu pratinho de comida e água, colocou a palha habitual sob seus pés, e o passarinho se sentiu novamente em casa. Tudo era novamente igual, mas completamente diferente.

E o passarinho viveu feliz para sempre, sem jamais ousar novamente sair de sua gaiola.



Moral da história: quem tem mente pequena (como a de um passarinho) jamais reunirá coragem suficiente para mudar de vida. Para ir além, é preciso ousar. Sem risco, não há melhora. E sem dor, não há mudança. Mas tudo bem, não há nada de errado em querer voltar quando não dá certo. O problema é quando a gente se acomoda...

Histórias passadas

Outras informações

  • - Nas cinco primeiras histórias, a ênfase foi na criação e descrição de personagens. A ênfase atual é nos diálogos, e/ou na elaboração de um final para os textos.
  • - As sete primeiras histórias postadas fazem parte de um grupo temático arbitrariamente criado e intitulado "Amores impossíveis".