tentativa de praticar a escrita a partir da criação de personagens antropomorfizados (ou não) que precisam encarar o tédio do dia-a-dia

20 de jul. de 2006

A vaca Mimosa

Todo dia era sempre a mesma coisa. O seu Gumercindo acordava quando o sol raiava, colocava a primeira roupa que encontrava pela frente (geralmente, a mesma do dia anterior: a mesma de todos os dias!), tomava um café da manhã bem quente (para acordar, dizia), e se dirigia para o curral. Lá encontrava à sua espera a vaca Mimosa, sempre amarrada a um dos pilares do lado esquerdo da casinha de madeira, que antes servira-lhe como lar, e que hoje mal se sustentava em pé a cada ventania que assolava a fazenda.

Mimosa era uma vaca leiteira como as outras. Ela era uma vaca Holandesa de pele branca com manchinhas pretas esparsas distribuídas aleatoriamente pelo corpo – vista de longe, parecia um cão dálmata bem gordo. Mas, de perto, a visão era inconfundível: era uma vaca malhada tradicional, com suas tetas rosas carregadas de leite a balançar a cada movimento.

Seu Gumercindo pegava o balde amarelo, sentava no banquinho ao lado do cocho de Mimosa, e começava a tirar o leite de sua vaca preferida. A quantidade de leite era sempre farta, mais do que o suficiente para que dona Benta pudesse fazer os mais variados doces e queijos com o leite que saía da Mimosa.

Até que um dia Mimosa se cansou de fornecer leite o tempo todo. Ela lembrou-se do tempo em que era livre e vivia a pastar pelos campos bem verdinhos de seu dono. As outras vacas podiam ficar o tempo todo nos pastos, tomando sol, procurando sombras para proteger-se do calor excessivo, pastando sempre que tivessem vontade. E ela não. As outras vacas estavam sempre acompanhadas de seus terneirinhos. Mimosa não. Ela tinha vergonha em admitir, mas era virgem (ou ao menos se sentia assim). Até mesmo a lembrança das intrigas de várias vacas disputando o amor do único touro da fazenda já a fazia suspirar. Ela queria voltar a sua vida de adolescente. Qualquer coisa era melhor que ser uma patética vaca leiteira.

E então ela fez um esforço danado para parar de fornecer leite. No princípio, era difícil de conter, e Mimosa tinha até que fazer força. Mas com o tempo foi se tornando mais fácil, seu corpo foi colaborando, suas tetas foram murchando, e o leite secou. Foi questão de uma semana para que mais nenhuma gota de leite pudesse ser produzida.

Seu Gumercindo entrou em desespero. O que na quinta-feira parecia ser um probleminha passageiro, no sábado já assumia as proporções de uma verdadeira catástrofe. Sem o leite de sua única vaca leiteira, seu Gumercindo não teria o que fazer. Era preciso encontrar uma solução rápida.

Com o dinheiro contado, não bastaria apenas transferir uma de suas vacas de cria para a função de leiteira. Isso causaria um desequilíbrio em suas finanças. Era preciso tomar atitudes drásticas.

Menos de sete dias após o início da “crise de falta de leite”, seu Gumercindo encontrou uma solução: ele comprou uma das vacas leiteiras de seu vizinho. E Mimosa foi para o único lugar para onde vão as vacas que não dão leite: ela foi para o abate.

Histórias passadas

Outras informações

  • - Nas cinco primeiras histórias, a ênfase foi na criação e descrição de personagens. A ênfase atual é nos diálogos, e/ou na elaboração de um final para os textos.
  • - As sete primeiras histórias postadas fazem parte de um grupo temático arbitrariamente criado e intitulado "Amores impossíveis".