tentativa de praticar a escrita a partir da criação de personagens antropomorfizados (ou não) que precisam encarar o tédio do dia-a-dia

9 de fev. de 2007

A girafa acadêmica

(criação de personagem)

De pêlo amarelo, mas com manchas esparsas em tons amarronzados. E com um fino pescoço, comprido feito uma vara de pescar (ou até maior que isso). Aparentemente, ele era igual aos demais. Entretanto, o que diferenciava Jerônimo das demais girafas era a vontade de estudar.

Jerônimo era inteligente. Ele tinha paixão pela vida acadêmica. Jerônimo sabia até mesmo que o substantivo girafa era epiceno, o que significava que ele era uma girafa macho, e não “um girafa”, ou “um girafo”. Outra coisa que a girafa acadêmica descobriu, através de uma simples pesquisa pelo Google, era que os romanos chamavam as girafas de camelo leopardo, pois acreditavam se tratar da mistura de uma fêmea camelo com um macho leopardo. “Era burrinhos, esses romanos”, pensava Jerônimo.

Com o passar do tempo, sua ganância por estudos aumentava cada vez mais. Os atrativos da vida acadêmica lhe pareciam bastante promissores. Como todo seguidor da vida acadêmica, quanto mais estudava, mais queria estudar. E quanto mais conhecimento adquiria, mais tentava sugar o coro de quem porventura cruzasse seu caminho. Em pouco tempo, passou a usar de meios insidiosos para alcançar o poder no mundo científico. E, para tanto, poderia recorrer até mesmo a ameaças a estudantes universitários, se isso pudesse significar prestígio profissional. A girafa macho aparecia na janela das salas de aulas, para desconcentrar os alunos. Embora Jerônimo fosse invisível aos olhos dos humanos, os acadêmicos que sabiam de sua existência percebiam quando a girafa acadêmica estava por perto. O clima de qualquer sala se tornava pesado quando Jerônimo estivesse por perto. Assim, apesar da invisibilidade, alguns poucos sensitivos eram capazes de perceber sua presença nos arredores, embora falhassem em perceber exatamente a localização espacial específica. Para facilitar a localização, a girafa acadêmica muitas vezes deixava insígnias nos locais pelos quais passava, de modo a identificar sua presença. Tais símbolos poderiam estar na estampa de uma rede de fast food, ou em uma foto de um outdoor. Mas só alguns poucos iniciados no segredo da girafa eram capazes de perceber o que esses signos pretendiam realmente significar.

A grande vantagem de ser invisível aos humanos era a de poder se espreitar pelos mais diversos ambientes para se alimentar de estudos, mesmo com todo o tamanho de Jerônimo.

Jerônimo também costumava circular pelos lugares freqüentados pelos alunos em momentos de lazer. De fato, ele aparecia a qualquer momento. Ele era perceptível todo o tempo. Às vezes, aparecia de modo subliminar, como num porta-copos da praça de alimentação de uma feira-livre, ou na primeira página do jornal, escondido sob um título de uma matéria sobre zoológicos. Jerônimo estava em todos os lugares que possuíssem qualquer resquício de vida acadêmica. Ele era onipresente.

Para a sorte dos estudantes – o que evitava que eles tivessem seus conhecimentos sugados pela ganância da girafa acadêmica – Jerônimo dificilmente cabia nos lugares por eles freqüentados. Havia uma grande limitação de altura. Enquanto as construções de humanos possuíam um limite de altura em torno de 3 metros de altura, Jerônimo media 5,2 metros. 3 metros só de pescoço!

O pescoço era sua proteção natural contra predadores. Os maiores predadores da girafa acadêmica eram os orientadores. Ela achava que não precisava de ajuda para pesquisar, e por isso fugia tanto dos orientadores.

Mas um pescoço alto tinha lá suas vantagens, como permitir alcançar alimentos altos (geralmente mais suculentos e saborosos) e facilitar a vigilância (o que permitia escapar dos perigos mais facilmente). Mas havia também desvantagens, como, por exemplo, a hora de tomar água. Tomar água era uma verdadeira tortura para a girafa acadêmica. Ela precisava abrir bem as pernas e baixar o pescoço ao máximo, até que a cabeça se aproximasse do chão. A posição era totalmente desconfortável. Outras girafas costumavam ficar de guarda quando uma se abaixasse para tomar água na floresta, pois esses animais ficam extremamente vulneráveis na posição de pernas abertas e pescoço baixo. Mas como Jerônimo era uma girafa solitária (sozinho na tarefa de dominar o mundo acadêmico das girafas), ele precisava confiar plenamente na sua total invisibilidade para conseguir realizar a árdua tarefa de tomar água.

Isso acontece porque o pescoço das girafas é pouco maleável. Apesar do comprimento, as girafas possuem o mesmo número de vértebras que os humanos (sete). Assim, apesar de longo, o pescoço é pouco flexível.

Um problema semelhante ao de tomar água era enfrentado por Jerônimo para conseguir ler um bom livro. Por isso, ele preferia ler no computador, a partir da janela de algum prédio alto que tivesse a tela voltada para a janela. Ele tinha uma especial preferência pelo segundo andar dos edifícios em que vivessem estudantes com vida acadêmica ativa. Jerônimo não dizia a ninguém, mas no fundo preferia os cursos relacionados à área de Ciências Sociais Aplicadas. Principalmente o Direito.

Dos cinco sentidos clássicos (ou seis, se se considerar o resultado da soma dos outros cinco como um sentido autônomo - a intuição, que era bastante ativa em Jerônimo), o mais aguçado da girafa acadêmica era a visão. Do alto de seus 5,2 metros, a girafa macho podia enxergar longe, muito longe.

Nas girafas em geral, a visão é o sentido mais desenvolvido. Elas também têm audição e olfato poderosos. Em compensação, as girafas não têm voz. Mesmo apresentando órgãos fonadores completos e perfeitos, uma girafa raramente emite sons. Por um tempo até se supôs que as girafas fossem totalmente mudas. Mas, hoje em dia, sabe-se que, embora sejam animais silenciosos (mesmo com todo aquele tamanho!), elas emitem alguns grunhidos.

Outro fato curioso é que a língua das girafas é extremamente longa, podendo chegar a até 40 centímetros de comprimento. Diz a lenda que as girafas são capazes de limpar as orelhas com a própria língua. Jerônimo ficou sabendo disso e tentou realizar a tarefa, mas não conseguiu. Como ele é uma única girafa, fica difícil extrair uma regra geral a partir de uma única tentativa. Mas ele desconfia que a profecia seja uma tremenda furada. Ou acaso alguém já viu uma girafa limpar as próprias orelhas?

Jerônimo passava muitas horas por dia se alimentado. Nesse tempo se incluía o tempo necessário para retirar o alimento do alto das acácias, o tempo de mastigação, e as horas em que a girafa passava ruminando. Ele detestava o fato de ser ruminante, mas, ao menos assim, podia importunar estudantes ao mesmo tempo em que se alimentava – alimento para o corpo e para a mente, concomitantemente.

E assim vivia a girafa acadêmica, alimentando-se o tempo todo do conhecimento alheio e atacando os estudantes indefesos do alto de seus 5,2 metros de comprimento.


(rascunho a ser complementado)

Histórias passadas

Outras informações

  • - Nas cinco primeiras histórias, a ênfase foi na criação e descrição de personagens. A ênfase atual é nos diálogos, e/ou na elaboração de um final para os textos.
  • - As sete primeiras histórias postadas fazem parte de um grupo temático arbitrariamente criado e intitulado "Amores impossíveis".