tentativa de praticar a escrita a partir da criação de personagens antropomorfizados (ou não) que precisam encarar o tédio do dia-a-dia

28 de dez. de 2005

O camelo sonhador

Rodrigo era um camelo amarelo de pêlo vistoso, meio magrela, alto, e com dois calombos nas costas. Ele vivia no deserto, mas o que o diferenciava dos demais era o fato de ser manco — e por isso tinha de viver acorrentado, por clemência de seu dono (qual seria a utilidade de um camelo manco no deserto?).



Os dias de Rodrigo eram um tanto monótonos. Todo dia ele acordava e se debatia, numa tentativa desesperada de livrar-se da corrente (semelhante àquela de um condenado à forca em seu último dia de confinamento: qualquer esforço é válido para escapar da cela), seguida de uma dose hiper-realista de consciência (e de um leve sentimento de frustração, por se encontrar mais um dia com sua liberdade de ir e vir cerceada, seguido de mero conformismo). Uma vez por semana ele recebia pequenas doses de água ao longo do dia. Rodrigo tinha ódio do idiota que tinha espalhado o mito de que camelos não sentem sede porque vivem no deserto. Ele sentia sede, sim, muita sede. Mas infelizmente não tinha como exprimir isso para seu dono, e muito menos tinha como ir em busca de sua própria água. Às vezes ele seguia lambendo seu reservatório de água quando já vazio, como uma forma pouco original de tentar significar que ainda estava com sede. Mas seu dono não compreendia, e apenas ria da atitude maluca de seu camelo adoidado.



Nos demais dias da semana e nas demais partes do dia, o camelo se dedicava ao amor impossível por uma camela que avistava à distância. Muitas vezes ele até esquecia que estava acorrentado e tentava trotear em direção a ela — mas as pesadas correntes de ferro estavam ali, firmes e fortes, para trazê-lo de volta à realidade ao menor passo em direção ao movimento.



Ele sonhava com o dia em que estaria livre das correntes e pudesse correr em direção a sua amada. Seu sonho era puro, inocente. Mal ele sabia que, de fato, manifestava apreço por dois montes de areia. O que ele avistava era, na verdade, uma miragem. No horizonte podia-se ver duas dunas de areia, e à distância elas se pareciam com as curvas delicadas de uma linda camela. O engano de Rodrigo era totalmente justificável. Mas ele não percebia o quanto estava sendo enganado por sua própria visão (dizem que nossos olhos estão sempre condicionados por nosso cérebro a tentar localizar formas de pessoas em tudo o que vemos). E cada vez mais alimentava sua paixão impossível por uma camela que sequer existia. Ele não entendia que o horizonte é como o futuro: é algo que nunca chega. Ambos, quando atingidos, passam a ser outra coisa. Futuro vira passado, horizonte vira distância percorrida. Tanto um quanto outro nada mais são que utopias: aquilo que se deseja, aquilo que nos faz caminhar, aquilo que serve de combustível a nossas vidas; mas que, quando vira realidade, deixa de ser o que inicialmente se queria.



Um dia, com sede, e ao mesmo tempo perdidamente apaixonado, Rodrigo uniu todas as suas parcas forças e forçou a corrente. Com muito esforço, conseguiu se soltar. Assim que se soltou, o camelo correu em direção a sua amada. Correu rumo ao horizonte, e, quando chegou lá (ou achou ter chegado, pois tinha percorrido uma longa distância) percebeu o quanto nossos sonhos podem ser fúteis se de fato perseguidos. Tudo era só areia. Não existia camela alguma. Mas Rodrigo percebera o quanto aquela camela inexistente fora capaz de inspirá-lo, de fornecer energia para querer viver cada vez mais, de lhe dar a esperança para acordar em um novo dia... Ele vivia para amá-la, e, no entanto, ela nem existia.



Moral da história: Acredite nos sonhos. Na pior das hipóteses, eles pelo menos podem servir para te levar ao longe.

Nenhum comentário:

Histórias passadas

Outras informações

  • - Nas cinco primeiras histórias, a ênfase foi na criação e descrição de personagens. A ênfase atual é nos diálogos, e/ou na elaboração de um final para os textos.
  • - As sete primeiras histórias postadas fazem parte de um grupo temático arbitrariamente criado e intitulado "Amores impossíveis".