tentativa de praticar a escrita a partir da criação de personagens antropomorfizados (ou não) que precisam encarar o tédio do dia-a-dia

15 de dez. de 2005

A ovelha e o ornitorrinco

      Ofélia convidou seu grande amigo Enrico para um jantar no restaurante famoso de saladas à beira da lagoa. O relógio marcava 19h30. Como eles tinham marcado de se encontrar no local às 19h, Ofélia começava a ficar preocupada. Ela já tinha passado pelos estágios de rejeição (e se o amigo tivesse desistido de ir jantar com ela?), amnésia momentânea (e se tivessem marcado para jantar em outro horário? Em outro local? Em outro dia?) e raiva:

      — Ele me paga por essa demora! Grr.

      No momento, ela estava relativamente tranqüila, numa fase da espera em que era capaz de entender a demora do amigo, contanto que ele tivesse um bom motivo para chegar atrasado. Talvez a culpa fosse até do trânsito, pois a essa hora, pouco antes de escurecer, as pessoas estão todas indo para a casa, o que deixa as ruas bastante congestionadas.

      Foi então que ela exclamou, num tom que era audível apenas para si, sentada à uma mesa no canto do restaurante e sentindo-se a única ovelha solitária do lugar:

      — Ai, ai, e esse menino que não chega...

      Assim que terminou de pronunciar a frase, Ofélia olhou para a porta e viu Enrico chegando. Sentiu-se aliviada, e já nem lembrava mais por que antes estivera tão brava com ele.

      Enrico e Ofélia eram amigos de longa data. Conheceram-se na infância, quando ela perdeu-se da malhada e foi parar na margem do rio, sem saber para que lado ir. Enrico, profundo conhecedor da região, por ouvir as histórias fantásticas que os pescadores contavam, indicou-lhe o caminho de volta. A partir de então, sempre que Ofélia aparecia por ali, Enrico já sabia que ela estava perdida e os dois aproveitavam para conversar e brincar antes do entardecer. Às vezes o pastor se dava conta de que uma de suas ovelhas estava perdida, e a encontrava brincando na margem do rio com um animal esquisito. Ele não entendia como poderia haver um laço de amizade entre uma ovelha e um ornitorrinco. E, sem hesitar, pegava seu cajado e guiava Ofélia pelo caminho de volta.

      Mas, voltando à cena do restaurante. Ofélia aguardava na mesa do canto, e se surpreendeu ao ver Enrico entrar no restaurante.
      Ele estava tão elegante, tão bem arrumado, que ela não pôde deixar de comentar o fato assim que Enrico se sentou:

      — Uau, tudo isso para um jantarzinho com esta velha amiga? Da próxima vez me avisa que venho de vestido longo.

      Enrico enrubesceu. Ele notara já desde a porta que a amiga estava muito bonita. Ofélia encontrava-se tosada para o verão, mas seu pêlo estava começando a crescer, num ponto intermediário entre uma tosa e outra. Enrico teve de segurar muitos suspiros para poder finalmente falar:

      — Ah, que isso Ofélia. A situação merece uma roupa especial. Afinal, fazia tanto tempo que você não me convidava para nada. É até motivo para comemorar! Mas você está muito linda esta noite. Tão bela quanto uma flor.

      — Ai, Rico, admiro muito essa sua cordialidade. Mas será que mereço tanto?

      — Merece sim. Você merece tudo.

      — Assim você me deixa bamba. Mas você também é culpado por estarmos há tanto tempo sem nos vermos. Por que não entrou em contato?

      — Ah, ficamos tanto tempo sem nos falar que achei que você até já tivesse se esquecido de mim.

      — Que isso, Rico. Dos amigos de verdade a gente nunca esquece.

      E então o garçom dirigiu-se à mesa dos dois. Para evitar ter de gastar com ternos, o restaurante da beira da lagoa tinha o costume de contratar apenas pingüins para o cargo. Pois um belo pingüim aproximou-se da mesa dos dois e entregou-lhes os menus.

      — Façam sua escolha, sem pressa. Assim que tiverem feito sua opção, podem me chamar pelo botão no centro da mesa.
      Ofélia e Enrico interromperam, então, o assunto anterior. Os dois passaram a olhar atentamente cada opção de prato do local, com vistas a fazer a melhor das opções.

      — O que você me recomendaria, Ofélia? Nunca estive aqui antes. Você com certeza conhece melhor os pratos do que eu.

      — Não acredito que você nunca esteve aqui! A comida é ótima! Venho sempre que posso.

      — Gente fina é outra coisa.

      — Ah, que isso, Rico. Você é muito mais elegante que eu. Sou uma simples mortal, apaixonada por saladas.

      Para que a situação não ficasse esquisita antes mesmo do prato principal, Enrico optou por desviar-se do assunto. Aquela sucessão de elogios não estava normal. Enrico era apaixonado por Ofélia há vários anos. E quem pôde esperar tanto tempo para se declarar, podia muito bem aguardar mais um pouco. Então, o ornitorrinco agarrou-se com todas suas forças à cadeira, e antes que o silêncio tornasse-se constrangedor, perguntou:

      — Mas então, alguma sugestão de prato?

      — Ah, a salada de alface daqui é maravilhosa. Tenho certeza que você vai adorar.

      — Alface? Não sei não. Sou mais agrião, acelga, alfafa. E isso ainda sem sair da letra A!

      — Alface, não, então? Que tal a saladinha de rúcula com batatas?

      — Parece interessante. Vem algum acompanhamento?

      — Sim, todas as saladas vêm com talos de brócolis em separado.

      — Hm, adoro brócolis. Estou gostando deste lugar. Tanto pelos pratos quanto pela companhia.

      Ofélia sorriu e arrematou:

      — Então, duas saladas de rúcula com batatas?

      — Sim, isso mesmo. Vamos chamar o garçom.

      E então Enrico pressionou o botão, e antes que pudesse largá-lo, o pingüim-garçom já estava diante deles, pronto para anotar o pedido:

      — E o que vai ser, então?

      Ofélia fez o pedido. Enrico solicitou também dois copos d'água, mas pediu expressamente que eles viessem apenas quando chegasse a salada. Ele odiava o costume de certos restaurantes de servir a bebida antes da refeição, de modo que, quando esta chega, ou o refresco já não está mais gelado, ou o cliente já terminou de tomar e se vê forçado a pedir outra rodada de bebidas.

      — Mas, então, você ainda não me disse o motivo para ter me convidado para este jantar.

      — Ai, Rico. Estou apaixonada! Encontrei o amor da minha vida! Precisava contar isso para você.

      Numa tentativa pouco convincente de conter o espanto, Enrico prontamente perguntou:

      — E ele já sabe? É recíproca a coisa?

      — Não sei. Acho que sim.

      Ainda tentando conter a indignação, o ornitorrinco prosseguiu:

      — Como não sabe?

      — Sempre que me aproximo, ele late duas vezes, dá três pulinhos e senta. Se isso não é amor, não sei o que pode ser!

      Já incapaz de disfarçar, Enrico declara:

      — Eu tinha uma idéia totalmente errada do motivo deste jantar. Estou arrasado. Você não gosta de mim?

      — Sim, gosto de você. Rico, eu te amo.

      — Pois então, por que prefere uma bola de pêlos a mim?

      — Rico, sempre gostei de ti como a um irmão. Achei que você soubesse disso.

      — No início eu também te considerava apenas uma amiga. Mas com o tempo a coisa mudou. A gente não é mais criança!

      — Não fique nervosinho. Tenho certeza que há um monte de garotas que dariam tudo para sair com você.

      — Não me venha com essa conversa. Você sabe que ninguém me quer. Quem vai me querer com esse bico de pato, essas nadadeiras, e esse veneno no rabo?

      — Pois para mim esse seu bico é justamente o seu maior charme. Diga-me, que outro mamífero tem um bico tão sexy quanto o seu?

      — Será? Sempre me achei tão caidinho.

      — Enrico, não diga isso. Você é o máximo! Qualquer uma ficaria caidinha por você.

      — Mas aí é que está. Eu não quero qualquer uma. Eu quero você!

      — Quem ouve você falando assim até pensa que está falando sério. Você daria um ótimo político, pela maneira com que manipula a verdade. Mas diga, você não tem ninguém em vista?

      — Fora você, não.

      — Ai, Rico, você me mata com esse seu senso de humor!

      — Por que ninguém me leva a sério? Bom, e essa comida que não chega?

      — Eles não costumam demorar muito aqui neste restaurante.

      — Tomara. Não consigo ficar muito tempo longe da água.

      — Nem esquenta. Em seguida a comida chega.

      — Está bem. Enquanto isso, conte-me mais sobre o rapaz que roubou seu coração. Qual é o nome dele? Eu o conheço?

      — Eu chamo ele de Fofinho. Sabe como é, ainda não tivemos uma oportunidade de conversar, assim, a sós. Ele é todo branco, com o pêlo encaracolado, e tem olhos azuis. Talvez você possa conhecê-lo ainda hoje, convidei-o para vir aqui.

      — E o que ele disse?

      — Latiu duas vezes, deu três pulinhos e sentou. Mas ainda tenho esperanças de que venha. Sabe como é, homens. Vai entender o que passa na cabeça deles!

      — Mas e você já comentou com ele suas reais intenções? Às vezes também é difícil para nós homens percebermos o que se passa na cabeça de uma mulher.

      — Interessante você mencionar isso. Talvez possa me ajudar a desvendar a mente do Fofinho. Semana passada, cansada de esperar alguma atitude dele, resolvi falar tudo o que sentia, abrir meu coração. Mas estranhei sua reação.

      — O que ele disse?
      — Nada. Latiu duas vezes, deu três pulinhos, e sentou.

      — Esse cara é muito estranho. Mas vai ver essa é sua maneira de demonstrar que também sente algo por você. Se não estivesse interessado, garanto que não daria os três pulinhos.

      — É, é verdade. Olha, o garçom está vindo na nossa direção. Acho que nosso prato está chegando. Hmm. Estou com muita fome. Faz tempo que não como folhas tão chiques.

      — Ah, finalmente. Já estava desacreditando no serviço deste restaurante. Sempre me falaram tão bem. Não achei que fossem demorar tanto para servir.

      — Não esquenta. É só você dar uma garfada nessa saladinha que num instante esquece o tanto que teve de esperar por ela. Eu te asseguro isso.

      — Hm, tomara.



      E os dois então saborearam um delicioso prato de salada de rúcula com batatas, acompanhado de uma porção generosa de talos de brócolis. Enquanto comiam, Enrico não conseguia parar de pensar em Ofélia. Ele a amava, desde muito tempo. Mas fora incapaz de contar-lhe antes, e perdera a oportunidade de tê-la em seus braços. Agora era tarde. Mas Enrico não desanimou. Ele estava decidido a lutar. Com certeza em pouco tempo ela esqueceria o maldito poodle de pelúcia do filho do pastor de ovelhas e teria olhos para ele. Enrico conhecia bem Ofélia. Ele sabia que ela era dada a romances passageiros, paixões efêmeras, e amores impossíveis. Era questão de tempo para ela esquecer o tal do Fofinho. E aí sim, Enrico poderia abusar de suas investidas para com Ofélia. Ele até já planejava as vezes em que a convidaria para jantar ali, no restaurante da beira da lagoa. Aquele lugar parecia-lhe bacana.

      Enquanto isso, Ofélia só pensava no seu amor. O Poodle era tão lindo, era tão fofo, era tão querido, tão meigo. Por que ele não apareceu ali? Por que ele não olhava para ela? Por que, sempre que se aproximasse e dissesse algo, Fofinho simplesmente latia duas vezes, pulava três vezes, e sentava? O que aquilo queria dizer?



      Apesar do apetite voraz (era capaz de comer o equivalente a seu peso de uma só vez se fosse preciso), antes de cada refeição Enrico realizava um ritual meio maluco: pegava o alimento que estava prestes a ingerir, batia uma de suas extremidades três vezes no chão (para certificar-se de que não era oco), virava da esquerda para direita, de cima para baixo, e de uma face a outra, e só depois de todos esses atos concluídos é que Rico saboreava qualquer alimento. E, para ele, tudo isso era coisa séria. Ai de quem debochasse. Sempre que por excesso de fome ou por preguiça ele deixasse de fazê-lo, punia-se de forma violenta, dando bicadas em seu próprio rabo. Ofélia já estava acostumada com isso tudo, sabia que o amigo sofria de transtorno obsessivo-compulsivo, e tinha ciência de que o tratamento havia sido falho. Mas os demais animaizinhos que jantavam no restaurante acharam tudo muito estranho. Ainda bem que Enrico era meio abobalhado para essas coisas, não percebia quando os outros o olhavam, nem sabia o que pensavam dele. Naquele momento, ele só tinha olhos, ouvidos e pensamentos para Ofélia. E, embora tentasse disfarçar, todos percebiam o quanto ele admirava ela mais que a uma amiga. A única incapaz de perceber isso era justamente Ofélia, pois seus pensamentos estavam no Poodle. Ia ser difícil fazer esse triângulo aberto transformar-se numa linha reta. Um romance entre os dois era praticamente impossível. Ofélia via e sempre veria Enrico como um amigo, nada mais que um amigo. Talvez um irmão: Enrico era exatamente isso para Ofélia; era como o irmão, que ela nunca teve.



* to be continued... :P

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Histórias passadas

Outras informações

  • - Nas cinco primeiras histórias, a ênfase foi na criação e descrição de personagens. A ênfase atual é nos diálogos, e/ou na elaboração de um final para os textos.
  • - As sete primeiras histórias postadas fazem parte de um grupo temático arbitrariamente criado e intitulado "Amores impossíveis".