tentativa de praticar a escrita a partir da criação de personagens antropomorfizados (ou não) que precisam encarar o tédio do dia-a-dia

14 de dez. de 2005

O pato Renato

      Renato era um pato meio esquisito. Ele vivia em um lago no meio do parquinho infantil, cercado de falsa natureza por todos os lados (e de grandes prédios cinzas de concreto pelos ares). Sua plumagem era branca, mas estava meio amarelada pela ação do tempo, e por conta das fumaças de grande cidade, com as quais era obrigado a conviver todo dia. Um de seus maiores traumas era nunca ter aprendido a fazer Quack-quack (limitava-se a um disforme "queek queek", meio que uma mistura de uma porta de geladeira velha rangendo e um pato em apuros), e seus olhos grandes e curiosos pareciam que a qualquer momento saltar-lhe-iam da órbita. Ele também tinha um estranho penacho branco na cabeça, que balançava toda vez que se mexia, o que lhe conferia um certo ar solene, apesar da informalidade do lago.



      Como o lago era público, e freqüentado por toda sorte de animais (de insossos peixinhos dourados abandonados por seus donos insensíveis a estranhos humanos que abandonam seus peixes — o parquinho estava sempre cheio de crianças moradoras nos prédios dos arredores, e sabe-se lá onde esses monstrinhos punham suas mãos!), Renato vivia com medo de contrair alguma doença. Por isso, ele basicamente passava o dia inteiro na margem do lago, e evitava avançar e arriscar pôr em risco a sua saúde já bastante debilitada. Às vezes ele se entediava por não fazer nada o dia todo, e dava pequenas voltas, mas nunca ia muito longe, pois em seguida encontrava alguma partícula não-identificada boiando na água e fugia em disparada.



      Numa tarde particularmente ensolarada (embora fosse difícil ver o sol, com tantas folhas falsas e prédios bem altos obstruindo a vista), Renato passeava pelo lago, meio sem rumo, e avistou, com sua vista bastante acurada, uma linda pata amarela na outra extremidade da água. Aproximando-se, meio receoso e bastante atrapalhado, Renato percebeu que ela era consideravelmente menor que ele, mas isso não parecia ser problema, pois a pata era perfeita, e linda. Então Renato passou a fazer uma série de besteiras que os apaixonados fazem quando querem chamar a atenção, para ver se a pata o notava. Entretanto, ela não reagia. Pelo contrário, sequer se mexeu quando Renato começou a fazer as mais doidas piruetas na superfície da água. Também pudera — a pata avistada por Renato era uma pata de borracha!



      Quando retornava pelo mesmo caminho pelo qual veio — Renato vivia uma vida toda metódica, cheia de peculiaridades que precisavam ser seguidas, para evitar que contraísse alguma doença (num laguinho público? Eram muitas as ameaças à saúde que poderiam ser encontradas!) —, Renato esbarrou numa carteira de cigarro, abandonada por algum humano inescrupuloso bem no meio do lago, com a fotinho virada para cima. Ao vê-la, Renato acreditou que também tinha câncer de pulmão, e entrou em pânico. Só muito tempo depois, e com muito esforço, foi convencido pelos demais patos de que ele não tinha sequer um pulmão humano, quanto mais um câncer nele. Seus amigos diziam que, desse jeito, com tanta frescura, dificilmente ele ia encontrar uma namorada. Quem iria querer ficar ao lado de um pato todo metódico e com hipocondria? Mas ele ignorava as advertências dos demais. Na verdade, ele estava tranqüilo: já não tinha ouvidos para os outros desde que conhecera a pata amarela do outro lado do lago. Só que ele não sabia que o romance era meio impraticável, já que eles pertenciam a diferentes classes de patos — ela, era da classe dos inanimados; ele, da ordem dos anseriformes.



      Em pouco tempo, a vida do pato mudou. Enquanto não obtivesse resposta de seu amor (tanto negativa como positiva) Renato vivia a cruzar o lago, dia e noite. E, indo de uma extremidade à outra, expunha-se a diversos perigos de contágio de doença. Ora se preocupava por ser fumante passivo ao ouvir algum comentário de humano na beira do lago e sentir a aproximação da fumaça, ora seu medo recaía sobre alguma folha seca que despencava de algum galho sobre a água (pois a árvore da qual ela se desprendera podia muito bem estar contaminada!).



      À medida que a paixão de Renato pela pata de borracha aumentava, também crescia seu medo de pegar alguma doença. Não demorou muito para que ficasse meio paranóico. Seu medo de contrair doenças era tanto, que ele passou a se mover cada vez menos — e se ele pegasse a gripe do frango? E se ele morresse afogado? O ar poderia estar contaminado. A própria água era uma ameaça, mas Renato não podia parar de respirar ou deixar de tocar o solo. Queria aprender a voar, para não entrar em contato com a terra ou com a água. Mas pesquisou no Google e descobriu que a quantidade de impurezas no ar era absurda. Aí ele não sabia o que fazer e simplesmente ficou parado. Parou de respirar. Não mais se mexeu. E hoje em dia ele é um pato de borracha (parado, imóvel, sem respirar). O ruim é que ele nunca pôde conquistar o amor da pata de borracha, mesmo agora que também é feito do mesmo material. Mas eles vivem felizes, um ao lado do outro, como Renato queria, sem no entanto terem a capacidade, inerente aos seres vivos, de poderem se virar e se olhar — e de se amar (existe coisa mais viva que o amor?).

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Histórias passadas

Outras informações

  • - Nas cinco primeiras histórias, a ênfase foi na criação e descrição de personagens. A ênfase atual é nos diálogos, e/ou na elaboração de um final para os textos.
  • - As sete primeiras histórias postadas fazem parte de um grupo temático arbitrariamente criado e intitulado "Amores impossíveis".